Modelos de enfrentamento da desigualdade social – Claudia Pfeiffer

A Covid-19 revelou, novamente, de forma brutal, a desigualdade social no país, nas cidades e distritos brasileiros. Expôs, de forma clara, como, apesar de tantas iniciativas ao longo de tanto tempo – do poder público, de organizações da sociedade civil ou do Terceiro Setor e até mesmo de empresas privadas -, pouco mudou substancialmente, no que tange às condições de vida das populações que residem em “favelas”, “comunidades” ou “territórios em desvantagem social”.

Vou tratar do assunto, com base na minha experiência profissional, nos últimos 37 anos.

Comecei a pesquisar sobre e/ou a atuar no gerenciamento de projetos sociais nesses locais, em 1983. De lá para cá, foram muitos os aprendizados, testemunhos, reflexões.

Minha primeira experiência ocorreu assim que me formei, quando fui trabalhar no Núcleo de Estudos sobre a Mulher – NEM, da PUC-Rio. Lá, participei de uma pesquisa, no Vidigal, sobre o Impacto da Urbanização sobre a Participação da Mulher de Baixa Renda. Ainda jovem, e como filha da classe média, duas coisas me chocaram profundamente nessa experiência: a existência de barracos de madeira, com grandes frestas entre as tábuas; a violência contra a mulher. Passei noites de chuva sem dormir, imaginando o que as pessoas que moravam naqueles barracos estavam passando naquele momento. Passei dias inteiros, pensando em como ajudar aquelas mulheres. Foi nesse momento, que tive a compreensão da dimensão da vulnerabilidade das populações das favelas e que decidi dedicar a minha vida profissional a contribuir para mudar essa situação.

A segunda experiência foi na Vila Elza, no Rio Comprido, também no Rio de Janeiro. Acabara de conhecer um método de planejamento participativo, e, portanto, encontrara uma forma de passar da pesquisa para a “intervenção” (não gosto dessa palavra, mas é a que me vem no momento). Na época, a Prefeitura da Cidade implementava o Programa Favela-Bairro e eu tinha uma aluna da Prefeitura que estava preocupada com o fato de que todo o maciço do Morro dos Prazeres e do Escondidinho era objeto do programa, excetuando uma pequena comunidade do entrono. Decidimos ir até lá e elaborar, com os moradores (eles aceitaram nossa proposta), um diagnóstico participativo e um plano de ação com vistas à inclusão da comunidade no Programa. Essa experiência foi de fundamental importância para que eu passasse a acreditar que tudo é possível, quando se tem disponibilidade real para resolver problemas. Ela resultou numa parceria entre Universidade Federal do Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Habitação, Associação de Moradores da Vila Elza e uma empresa que fazia plantas aerofotogramétricas, da qual não me lembro o nome (ainda não existia o Google Earth), para atender as demandas da comunidade – parte delas atendida pela Prefeitura, no âmbito do Programa Bairrinho, que foi criado, inspirado por essa e outras experiências semelhantes.

Anos depois, tive a oportunidade de conduzir a elaboração participativa do Plano de Desenvolvimento Comunitário de Cidade de Deus, local ao qual me vinculei para todo o sempre, dados os laços profissionais e de amizade construídos nesse período. Essa experiência teve vários desdobramentos – um Seminário para a Avaliação de 1 ano do plano; a criação da Agência Cidade de Deus de Desenvolvimento Local, a interação da Agência com a UPP Social; a atualização participativa do Plano 5 ou 6 anos depois e um tempo depois do Projeto Agência S.A (os dois últimos, também sob a minha condução). E me mostrou a força das alianças por objetivos, entre representantes dos setores, público, privado e do Terceiro Setor, para a resolução de problemas. Dela resultaram diversos projetos, destacando-se a construção de 680 unidades habitacionais no local, para abrigar as pessoas que viviam nas condições mais precárias por lá.

Também nessa experiência, que considero uma das mais exitosas, pude ver as dificuldades do poder público em articular e sustentar ações e programas voltados para um mesmo território, dadas as disputas político-partidárias entre os entes federados. Tínhamos tudo para transformar a Cidade de Deus, de fato, em um ” lugar no qual todos tenham tranquilidade e satisfação em viver e criar seus filhos”, como queriam os moradores. Houve avanços nessa direção, com alguns governos municipais colaborando para isso, durante um certo período, mas muitos desses avanços hoje foram perdidos.

Da Cidade de Deus, fui para a Vila Aliança, também na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. Trabalhei, junto com diversos parceiros, para a consolidação do Centro Cultural A História Que Eu Conto, processo esse que resultou na ida da Nave do Conhecimento, projeto da Prefeitura, para o local, dentre outras ações relevantes. Aprendi que todo tipo de pré-conceito e preconceito pode ser superado, quando todos estão unidos por um interesse comum, voltado para o benefício público. O processo havia sido desencadeado por uma pessoa que havia sido presa por cometer um crime, que decidiu, após sair da prisão, se dedicar a evitar que outras pessoas vivessem o que ela viveu. E obteve o apoio da Prefeitura e de diversas organizações públicas e privadas na realização de seu intento.

Passado algum tempo, voltei a Vila Aliança, para, junto com alunos do Laboratório de Gerenciamento de Projetos de Engenharia Urbana, que criei e coordenei na POLI/UFRJ, fazermos um projeto que interessasse à população local. De lá fomos encaminhados para o Conjunto Habitacional Miguel Gustavo, conhecido como Rebu, em Senador Camará, considerado um local ainda mais necessitado de soluções para os seus problemas do que Vila Aliança. Em Rebu, junto com a equipe do Centro Municipal de Saúde Sílvio Barbosa CAP 5.1 e representante dos moradores, fizemos um diagnóstico participativo, no qual foi possível levantar, visualizar e mapear todos os problemas da localidade, identificar as iniciativas já em curso no CMS e fora dele, assim como as previstas. Pretendíamos, a partir do diagnóstico, promover atividades que contribuíssem para o desenvolvimento humano, comunitário e urbano na região. Esse projeto, no entanto, não foi à frente, devido à violência no local e ao fato de não termos obtido apoio dos órgãos públicos competentes para nos ajudar. Nessa experiência, aprendi que sem o apoio do poder público, em áreas muito violentas, é impossível que projetos cheguem a bom termo.

Por fim, mais recentemente, estive na Vila São Domingos, no Mato Grosso do Sul, a chamado de uma empresa que queria orientar seu investimento social no local, com base no levantamento, análise e priorização das demandas da população. O trabalho foi feito e a empresa adotou as sugestões dos moradores. Um trabalho no qual a verdade absoluta, de todas as partes, foi o parâmetro da ação, e, por outro lado, no qual pude aprender o poder intimidatório de “políticos” do interior do país.

Em que pese os problemas destacados nos processos brevemente relatados, foi interessante verificar, ao longo de todo esse tempo: o poder público sempre presente, em maior ou menor escala; o aumento do número de pessoas e organizações comprometidas com a resolução de problemas sociais; o empoderamento da população, que, hoje, se representa muito bem, não precisando de intermediários para ter sua voz ouvida e assumindo a condução de projetos de seu interesse.

Mas aí vem a Covid-19. E o que vemos? A desigualdade social expressa na significativamente maior vulnerabilidade das pessoas que residem nesses locais à doença e à morte; nas dificuldades dessas pessoas de se sustentar em situações de emergência ou de calamidade; nas dificuldades de todos em continuar suas vidas online, como o fez grande parte das classes média e alta.

Então me pergunto: em que medida avançamos? Qual o impacto social real de nossas ações? Como é possível que ainda hoje existam pessoas que não podem se defender de um vírus por residirem em habitações precárias, sem água para lavar as mãos, sem dinheiro para comprar sabão e álcool 70% e, muitas vezes, também sem acesso a serviços de saúde que assegurem a elas a possibilidade de serem tratadas? Como é possível que, em plena Era Digital, crianças, adolescentes, jovens e adultos não tenham acesso aos recursos necessários para nela se inserirem, de forma saudável e produtiva? Que país é esse? Quem somos nós? Por que estamos permitindo que isso aconteça?

Está mais do que na hora de repensarmos nossos “modelos de enfrentamento da desigualdade social” no Brasil.

1 comentário em “Modelos de enfrentamento da desigualdade social – Claudia Pfeiffer”

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